territorios.org    
Arquitetura e Tecnologia
Conceitos sobre Arquitetura Primitiva
Arquitetura Egípcia
Arquitetura Grega
Arquitetura Romana
Arquitetura Árabe
Arquitetura Românica
Arquitetura Gótica
Arquitetura do Renascimento
Giovani Batista Piranesi
Arquitetura do Art Nouveau
Movimento do Construtivismo Russo
Arquitetura e Revolução Industrial
Escola Bauhaus de Arte e Tecnologia
Considerações sobre os arquitetos Mies van der Rohe e Le Corbusier
Movimento Internacional Situacionista
Movimento Archigram
Arquitetura Metabolista Japonesa
Movimento do Desconstrutivismo
Novas tecnologias como mediação do espaço urbano
Sistemas urbanos flexíveis e seus impactos no sistema urbano
A descontinuidade do espaço-tempo redefinindo o conceito de lugar
As mídias digitais e as simulações na arquitetura
As interfaces digitais e a interatividade
A virtualidade enquanto realidade possível
Diagramas digitais e arquitetura
Sistemas evolutivos e animação digital
Grupo de Estudos Experimentais - UFES
Grupo de Pesquisa Cartografias Urbanas - UNILESTE/MG
Outros artigos do Prof. Bruno Massara Rocha

A DESCONTINUIDADE ESPAÇO-TEMPORAL REDEFININDO O CONCEITO DE LUGAR

Palavras-chave: descontinuidade; não-lugares; zonas estéreis; entre-lugar

Um dos principais sintomas que canalizam os esforços de vários autores em busca de melhores definições para a espacialidade urbana atual é a descontinuidade inerente aos processos urbano-industriais em suas dimensões sociais, políticas, econômicas e culturais. Diante de uma flexibilidade potencial adquirida em função dos sistemas de comunicação e transporte, essa descontinuidade foi ampliada devido a um maior assincronismo entre a dinâmica dos processos econômicos-industriais e as formas de utilização do território pela população.

Conceitualmente, vários autores têm buscado formas alternativas de definição deste ‘espaço intermediário’ que surge entre as necessidades econômico-industriais e as práticas do cotidiano. Esse 'intervalo' se deve a um processo de aceleração temporal nas dinâmicas econômicas contemporâneas, de amplificação das possibilidades de deslocamento, na necessidade de uma mobilidade de mercadorias mais eficiente e sincronizada e na multiplicação das fontes de informação e comunicação, etc.

O ‘lugar físico’ como é entendido tradicionalmente, lugar da experiência do corpo, lugar dotado de história, possuidor de uma identidade local relacional é, segundo Virilio [1], perpassado por interrupções que instauram um distanciamento entre a dimensão física e a dimensão temporal, provocando uma perda das relações entre os espaços imediatos, o entorno e a paisagem. O autor designa para esses tipos de lugares, caracterizados por grandes espaços de circulação, curta permanência e ausente de identidade local, o conceito de ‘zonas estéreis’. As ‘zonas estéreis’ se constituem basicamente de espaços de controle tanto de pessoas quanto para mercadorias que interrompem a continuidade do espaço físico da cidade sob a forma de: grandes superfícies de extração e produção; e infraestruturas de transporte e circulação de produtos. Ambas se inserem no contexto urbano provocando uma descontinuidade na maioria das vezes abrupta na organização e distribuição de atividades no território urbano em função das necessidades próprias da dinâmica industrial como afirma Castells:

"O que resta como lógica característica da nova localização industrial é a sua descontinuidade geográfica, paradoxalmente formada por complexos territoriais de produção" [2].

A descontinuidade geográfica pode ser considerada um primeiro fator que nos permite relativizar o entendimento do conceito de lugar como é feito no sentido tradicional. Em muitos casos, essa descontinuidade estabelece limites intransponíveis para o crescimento urbano além de condicionar a sua espacialização. Enquanto alguns autores como Koolhaas e Virilio consideram a esterilização dos espaços como sendo um dos principais aspectos desta nova leitura do lugar na sociedade contemporânea, vemos nas argumentações do antropólogo Augé que, uma vez estabelecida esta relação unilateral entre espaço e função, estaríamos vivendo em uma ‘supermodernidade’:

"A supermodernidade (que procede simultaneamente das três figuras do excesso que são a superabundância factual, a superabundância espacial e a individualização das referências) encontra naturalmente sua expressão completa nos não-lugares" [3].

Os ‘não-lugares’ são considerados, para Augé [4], a tipologia paradigmática deste espaço ausente de identidade, sendo basicamente constituído por locais com fins específicos de transporte, lazer e comércio, em que se soma uma ausência de relação de apropriação entre eles e os indivíduos. Os espaços que pertencem a essa esfera ausente de relações identitárias seriam as redes e cadeias de hotéis, grandes superfícies de distribuição, grandes estações e terminais de transporte de passageiros, entre outros. Percebe-se portanto que existe uma proximidade muito grande entre o que se define como ‘zonas estéreis’ e ‘não-lugares’. No caso dos ‘não-lugares’, Augé afirma que a condição dos excessos na qual vivemos atualmente é o fator fundamental para este “encolhimento do planeta”. Entretanto, o que ele considera como ‘excesso’ não envolve aspectos relacionados diretamente à diversidade morfológica do espaço arquitetônico, mas se refere ao excesso de temporalidades, ao excesso de possibilidades de comunicação, ao excesso de imagens, referências, ou seja, um excesso de ‘possibilidades de ocorrência’. A superabundância espacial a qual se refere o autor é diametralmente oposta à uma possível diversidade deste espaço arquitetural. Ele se refere às alterações de escala das relações e à multiplicação de referências que fundamentam uma proliferação de homogeneidade nos espaços físicos gerados a partir de então.

É fundamental considerar que essa condição espacial descrita sob o ponto de vista de vários autores é característica dos centros de poder e decisão onde a condição de ‘excessos’ é mais latente em função da melhor condição econômica. O alto poder aquisitivo, a eficiência dos transportes e o acesso rápido às informações potencializam e senão provocam este quadro apresentado por eles, que tem como um dos principais desdobramentos a ausência de identidade local dos espaços produzidos. 

Como foi colocado por Castells [5] em destaque na primeira citação, a lógica industrial contemporânea é descontínua e formada por complexos territoriais de produção. Estes complexos se relacionam a partir da idéia de sistemas integrados. O Brasil possui vários exemplos de complexos territoriais de produção, principalmente no estado de Minas Gerais, e eles se constituem por uma realidade híbrida de indústria e cidade. Nestas localidades é possível de se encontrar situações e equipamentos urbanos que operam em diferentes níveis de relação entre o território e seus habitantes, principalmente em espaços com forte interferência industrial devido à uma dinâmica flexível e mundializada que estamos a  apresentar ao longo desta dissertação.

Entretanto, apesar de algumas semelhanças, as reverberações produzidas pela superposição de referências e de temporalidades produzem na realidade brasileira efeitos particulares e resultados diferenciados daqueles diagnosticados em outros países da Europa. Nas zonas metropolitanas industriais brasileiras, o surgimento de infraestruturas urbanas para circulação e produção como anéis rodoviários, viadutos, pontes, esteiras rolantes, galpões industriais e terrenos de monocultura se interpenetram com o tecido urbano dos bairros residenciais, parques, estádios entre outros espaços da comunidade. Portanto, existe um ‘entre-lugar’ onde a mega escala produtiva se mescla com os espaços da comunidade. Este ‘entre-lugar’ pode ser percebido no fato de que um dos principais eixos de circulação de matéria-prima e produtos beneficiados (EFVM) [6] também transporta passageiros do interior ao litoral do país, onde estão as estruturas portuárias, até o interior do país, onde estão as minerações, e vice-versa.

Os ‘não-lugares’ e as ‘zonas estéreis’ corporificam, segundo Augé e Virilio, as acelerações temporais desta supermodernidade a qual se refere o primeiro autor; solidificam em edifícios partes de processo globais que se realizam num outro “lugar”, aquele definido e potencializado pelos atuais sistemas de informação e comunicação, que independem de localizações geográficas precisas. O ‘entre-lugar’ é gerado pela interferência de referências locais e globais simultaneamente. Estas últimas se corporificam em regiões com grande interferência industrial, equipamentos que se encontram dispersos pelo território, enclaves industriais das empresas de grande porte, sistemas de transporte ou de logística necessários para a circulação, que modificam a paisagem natural e se chocam com a pequena escala das práticas locais. Quando estes choques acontecem, são comuns a evidência de situações urbanas paradoxais como: a mistura de passageiros e mercadorias nos trens urbanos, comentado anteriormente; no aeroporto que funciona apenas nos dias de semana, quando os executivos estão viajando; e nas paisagens naturais que se “movem” com freqüência em função do constante transporte de grandes quantidades de escória, da movimentação de minérios e da exploração de eucalipto em grandes áreas de monocultura.

Estes cenários eminentemente industriais se mesclam com o tecido urbano das cidades e com todos os equipamentos que dela fazem parte como shopping centers, aeroportos, bairros de diferentes classes sociais, empresas de prestação de serviço local, áreas de lazer, etc. Não se trata, portanto, de áreas isoladas do contexto urbano local mas, ao contrário, inseridas nele. O espaço urbano destas regiões se constitui de uma superposição de diferentes identidades ora locais, ora transnacionais, produzindo um processo dialético de movimento contínuo entre a esterilização e a saturação referencial num mesmo espaço geográfico. Existem assim, níveis intermediários de coexistência de diferentes escalas urbanas e diferentes temporalidades que nos impedem de considerá-las somente enquanto ‘lugares’ ou ‘não-lugares’, e que também demandam de estratégias de mediação para a visualização de suas relações na arquitetura e urbanismo como forma de melhor agenciar possíveis estratégias de intervenção. São estas situações urbanas híbridas a que denominamos de ‘entre-lugares’.

A complexidade e a variedade de dimensões que envolve um tipo de análise deste tipo de situação urbana em que se sobrepõem equipamentos na paisagem demandam novos “olhares” e novas estratégias de apreensão e apresentação capazes de nos revelar a articulação dos processos que compõem o espaço físico como coloca Augé:

"O mundo da supermodernidade não tem as dimensões exatas daquele no qual pensamos viver, pois vivemos num mundo que ainda não aprendemos a olhar. Temos que reaprender a pensar o espaço" [7].

Pensar o espaço é tarefa fundamental para uma série de ciências como a arquitetura e o urbanismo, a geografia, sociologia, antropologia, assim como na agronomia, matemática e mesmo a biologia ou direito. A arquitetura e o urbanismo têm que, por sua vez, lidar constantemente com a intervenção nos espaços, gerar modificações estratégicas que agreguem valor de apropriação a eles. Tornar visível as problemáticas e as relações que ordenam o comportamento do espaço é um aspecto central da projetação contemporânea. Essa visualização pode potencializar o pensar o espaço, ampliar suas interpretações e oferecer mais possibilidades de atuação dos arquitetos e urbanistas.

Tanto Virilio quanto Augé nos mostram questões que buscam evidenciar uma erosão dos aspectos eminentemente físicos e visuais como unidades elementares de compreensão e de apresentação da condição urbana em determinadas localidades assoladas por uma economia globalizada. Enquanto Augé nos apresenta argumentos sobre o “encolhimento espacial” que caracteriza o mundo contemporâneo em função da mudança de escala de percepção do espaço promovida pela sobreposição dos sistemas de transporte e telecomunicação no espaço geográfico, Virilio nos mostra uma condição em que “a posição geográfica onde se situa a metrópole não mais se confunde com as oposições clássicas de cidade/campo ou centro/periferia e que a localização e axialidade já perderam há muito sua evidência”[8].

Embora estes autores tomem como referência grandes metrópoles mundiais localizadas na Europa e nos Estados Unidos, algumas situações similares podem ser percebidas em determinadas áreas urbanas brasileiras mesmo que suas manifestações ocorram de forma particular devido ao contexto nacional. Isso se deve à presença de grandes empresas multinacionais que, apesar de estabelecerem suas unidades produtivas em regiões do interior do país, participam de um sistema muito maior de proporções transnacionais. Estas empresas exercem uma influência muito grande no desenvolvimento destas regiões em múltiplos níveis: na modificação da paisagem, na criação de equipamentos e infraestruturas urbanas, na cadência de trabalho dos habitantes, na constituição de uma identidade local, nos fluxos demográficos regionais, na geração de oportunidades de prestação de serviços terceirizados, etc. Tomando como o exemplo a região metropolitana do Vale do Aço, localizada no vale do rio Piracicaba em Minas Gerais, a implantação de um complexo siderúrgico de base exportadora desencadeou um processo de grandes modificações na dinâmica de uma região praticamente rural, dentre elas a construção de uma cidade, Ipatinga.

Os reflexos urbanos locais da ampliação dos modos de relação entre diferentes localidades dentro de um âmbito econômico e industrial produzem, em muitos casos, configurações descontínuas. São espaços estratégicos e dispositivos urbanos mais voltados para a potencialização dos fluxos do que para a melhoria das condições locais, priorizando mais o sincronismo entre suas unidades produtivas do que a espacialidade produzida no território. A ausência de uma linearidade na ocupação do espaço local reflete um descompromisso destes equipamentos em se estabelecer uma relação de proximidade de usos e ocupação por parte do cotidiano imediato. Percebe-se uma superposição de escalas num mesmo espaço geográfico, possuindo de um lado os espaços da comunidade e de outro os reflexos industriais de um ‘sistema-mundo’ de produção. Em função da
ampla escala de articulação deste sistema e seus diversos elementos e condicionantes políticos, físicos, econômicos e sociais, sua visualização se torna impossível de ser feita de forma totalitária. O que percebemos são apenas alguns pontos desta rede de relações no território imediato. Compreender este sistema ou as linhas que tais pontualidades produzem é fundamental para se fazer uma aproximação mais processual da organização do território, que revele os graus de correspondência entre os espaços e nos ofereça possibilidades de apresentação de relações, a princípio, não visuais. A morfologia de visualização deste território passa necessariamente pelo conceito de “rede”. Entretanto, é um conceito que já vem sendo aplicado a um longo tempo ao se referenciar os grandes centros, mas que passa hoje por um processo de rediscussão em função de que, segundo Santos [9], “na realidade, nem há mais propriamente redes seus suportes são pontos”.

 






O fenômeno de “redes de cidades” já vem sendo discutido na Geografia e Sociologia desde os anos cinqüenta como afirma Capel [10], se apoiando em estudos das zonas de contato entre as áreas de influência das capitais metropolitanas, nas transformações das áreas rurais próximas utilizando indicadores diversos como a circulação do transporte coletivo, o uso dos equipamentos comerciais pela população, entre outros. Sob o olhar das “funções urbanas”, tais estudos buscavam analisar o impacto e a localização de funções comerciais, de serviço e indústrias na cidade, além da hierarquia urbana e de suas áreas de influência. Percebemos que são ainda indicadores de espaço físico, atrelados a aspectos de uma percepção imediata das articulações espaciais, uma observação direta dos centros urbanos e de seus fenômenos. A utilização do termo “sistema urbano” foi, segundo Capel, introduzido na década de sessenta, assumindo conceitos da Teoria dos Sistemas como, por exemplo, energia, entropia e fluxos numa tentativa de ampliar o repertório conceitual para lidar com a complexificação das redes de cidades. O “sistema urbano” se definiria, naquele momento, enquanto um conjunto de redes de centros urbanos com suas diversas funções, relações e interações. Entretanto, esta definição ainda não havia experimentado a aceleração destas relações em função das tecnologias digitais, que iriam reorganizar a estrutura funcional em algumas cidades resultando numa perda da autonomia local em questões econômicas [11]. A flexibilidade que se instaurou nos processos econômicos, produtivos e administrativos com o advento das tecnologias digitais incorporam novas variáveis ao sistema urbano atual tornando-o mais volúvel e instável.

Uma forma de apreensão e de apresentação deste tipo de sistema urbano passa necessariamente por aspectos como a velocidade e o tempo. A distância física dá lugar a uma outra forma de proximidade, “espaços distantes que se tornam mais próximos, porque mais acessíveis e outros mais próximos tornam-se distantes, porque inacessíveis” [12]. Para se compreender estes novos sistemas, e as situações urbanas geradas por uma dinâmica industrial flexível não basta apenas buscar suas características geográficas ou fatores eminentemente físicos, mas gerar uma investigação processual que envolva uma descrição de seus agentes, suas conexões, seus espaços sociais e de troca, infraestruturas e que potencialize os cruzamentos destes dados, instrumentalize análises e promova problematizações. 

Processos como a crescente especialização dos serviços terceirizados contratados pelas grandes empresas multinacionais levam a formação de vários centros especializados em locais distantes, porém articulados e acessíveis. A dispersão destes centros articulados pode comprometer uma coesão imediata do território urbano gerando bolsões produtivos integrados ao sistema econômico globalizado mas desconectados da realidade próxima, uma nova forma de centralização, como afirma Sassen:

"O lugar na economia globalizada não tem mais importância porque a dispersão das atividades econômicas produz novas formas de centralização territorial" [13].

Ao contrário do que afirma Sassen, ainda restam alguns aspectos que não desvincularam completamente de questões locacionais para o equilíbrio deste sistema de relações mundiais como os aspectos de abastecimento de energia, destinação de resíduos, extração de matéria- prima, entre outros. Aspectos operativos, literalmente produtivos e logísticos são regidos ainda, na maioria das vezes, por estratégias geográficas fundamentais como o abastecimento de água ou o preço da mão-de-obra. Segundo Santos [13], a globalização amplia o conceito de território, no que diz respeito ao uso que se faz dele. A globalização potencializa as características dos lugares em função de uma demanda Estratégica da dinâmica comercial que, muito imersa na competitividade, provoca um fenômeno inverso ao que se associa quando discute-se os efeitos da globalização na construção do território, a sua revalorização:

A globalização revaloriza os lugares e os lugares – de acordo com o que podem oferecer às empresas – potencializam a globalização na forma em que está aí, privilegiando a competitividade. Entre o território tal como ele é e a globalização como ela é cria-se uma relação de causalidade em benefício dos atores mais poderosos, dando ao espaço geográfico um papel inédito na dinâmica social [14].

Mesmo assim, não se pode desconsiderar que os sistemas de comunicação e informação vêm produzindo um estado de sinergia entre locais antes distantes gerando com isso novas formas de centralização não-territoriais, novos locais de troca e prestação de serviços organizados digitalmente. Se por um lado estes novos locais de trocas e acesso têm se polarizado em ambientes digitais colaborativos e integrados, por outro o território físico redefine o seu papel diante desta nova situação. Isso não significa que este território se reconfigure de forma linear e homogênea, uma vez que a sua nova configuração se encontra condicionada pela lógica da dinâmica econômica e produtiva que em muitos casos atropela outras questões urbanas envolvidas no uso do território. Se a revalorização do espaço em função da globalização potencializa o uso das características locais, criando novas categorias, novas organizações, ela não necessariamente melhora as relações espaciais sob o ponto de vista da escala local.

Koolhaas aponta a necessidade de se especular sobre quais novas categorias espaciais estamos hoje submetidos. Através de uma série de diferentes abordagens que relacionam o comportamento social, situações urbanas e novas redes e espaços de acesso a nível mundial, ele apresenta possíveis novas leituras do território atual a partir de recortes críticos entitulados The New World: 30 Spaces for the 21st Century [15]. Essas novas articulações espaciais que, segundo ele, redefinem a nossa percepção e compreensão do mundo, perpassam por várias esferas da sociedade: espaços domésticos, de trabalho, de lazer, espaços de encontro, espaços comerciais, industriais sobre os quais a ausência de parâmetros e limites precisos os tornam carentes de definição e formas de apresentação.

Em “New Frontiers: The Geography of Change" [16] Koolhaas propõe novas categorias de leitura para as noções tradicionais da geografia estabelecendo como critério de proximidade: afinidades político-partidárias, articulações de interesse entre empresas multinacionais e mercados consumidores, blocos de países que gozam de prosperidade social contra outros em lento desenvolvimento, paraísos fiscais, maiores mercados consumidores, etc. Neste sentido, a mancha no mapa físico-geográfico que define os limites físicos ou políticos destes territórios é insuficiente para uma apreensão de suas relações e processos de formação. A postura de Koolhaas busca alternativas de se cartografar um território urbano a partir de suas relações mais determinantes que gerenciam a produção e a organização do espaço físico e que pode tanto instaurar uma identidade e uma referência local como se sobrepor à outras existentes. 

A condição exposta por Koolhaas de constante redefinição geográficas, potencializada pela aceleração dos fenômenos apresentada por Virilio, nos leva a crer que a espacialidade contemporânea deve ser entendida como um processo inconstatnte. Diante desta condição de instabilidade como se apresenta o espaço, ganham relevância os mecanismos e as estratégias de apresentação de Lars Spuybroek, arquiteto holandês que chefia o escritório de arquitetura NOX localizado em Rotterdam. Spuybroek desenvolve um mecanismo digital que busca estabelecer relações entre os aspectos de flexibilidade do programa do edifício com os movimentos e os fluxos de pessoas e outros elementos em seu interior, que ele coloca da seguinte forma:

Os movimentos impressos pelas pessoas, as ações de trabalho, percursos, são mapeados utilizando os próprios elementos arquitetônicos que, através de uma série de linhas flexíveis, criam primeiramente uma linguagem de movimento, uma flexibilidade de uso e forma entre elementos arquitetônicos dados, que são então atualizados por diferentes movimentos possíveis de pessoas [17].

Para mapear estes elementos, ele utiliza recursos digitais de modelagem espacial que dão origem a ‘cordas’ e ‘molas’ sujeitas a deformações que interagem umas com as outras, buscando assim encontrar a capacidade estruturante dos próprios movimentos. Como ele mesmo explica, trata-se de um tipo de aproximação da apresentação que lida com o “olhar da arquitetura e da estrutura para além da imagem”, uma tentativa de “traduzir as ações através de meios visuais”. A multiplicação na forma de apreender e compreender o espaço contemporâneo aliadas ao surgimento de novas perspectivas de modelamento digital abrem, para Spuybroek, possibilidades de se aplicar na arquitetura métodos “diagramáticos” de visualização de informação que se inserem no interior dos processos e se preocupam menos com os aspectos morfológicos resultantes a posteriori. Estes métodos seriam caracterizados por um tipo de leitura que revelasse as ações e suas relações com a forma potencialmente gerada. O que ela busca exprimir é um conjunto de fatores e variáveis responsáveis pela configuração das atividades humanas e dos espaços por ela ocupados ao longo do tempo. A condição de se posicionar o sujeito no interior dos processos visa não somente uma apresentação dos fatores, mas problematizar as relações intrínsecas a eles através de diferentes formas de exibição. Neste sentido, esse tipo de apresentação está sempre inacabada, porque se atualiza constantemente a partir das variações do conteúdo ao longo do tempo e das ações que se sucedem. Esta condição diagramática permite um tipo de visualização que não se adere a uma ocasião apenas, mas busca tornar visível esta rede potencial de situações que se atualiza constantemente.

_____________________________________

NOTAS

[1] VIRILIO, Paul. O espaço crítico:e as perspectivas do tempo real. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1999, p. 13.

[2] CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 483.

[3] AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas, SP: Papirus, 2003, p. 100.

[4] idem.

[5] CASTELLS. A sociedade em rede, 1999.

[6] Estrada de Ferro Vitória-Minas, de propriedade da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), uma empresa de mineração e logística.

[7] AUGÉ. Não-lugares, 2003, p. 37.

[8]VIRILIO. O espaço crítico, 1999, p. 9.

[9] SANTOS, Milton .A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 2004, p. 264.

[10] CAPEL, Horacio. Una mirada histórica sobre los estudios de redes de ciudades y sistemas urbanos. GeoTrópico, v. 1, n. 1, p. 30-65, 2003. Versión PDF. Disponível em: <http://www.geotropico.org/files/PDF_Capel_1_1.pdf. Acesso em: jan. 2005.

[11] idem.

[12] PEIXOTO, Nelson. Paisagens urbanas. São Paulo: SENAC, 2004, p. 397.

[13] SASSEN, Saskia. As cidades na economia mundial. São Paulo: Studio Nobel, 1998, p. 13-14.

[14] SANTOS, Milton; SEABRA, Odette Carvalho de Lima; CARVALHO, Monica de; LEITE, Jose Correa. Território e sociedade. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2000, p. 23.

[15] KOOLHAAS, Rem. The new world: 30 spaces for the 21st century. Wired Magazine , New York, n. 11, Jun. 2003. Disponível em: <http://www.wired.com/wired/archive/11.06/>.

[16] idem.

[17] “The implied movement of people, the working, the walking, is mapped on to the architectural elements themselves, through a flexible set of lines where it creates a language of movement first, a flexibility of use and form between given architectural element (table, corridor) that is then actualised by different possible movements of people”. SPUYBROEK, Lars. Machining architecture. Disponível em: <http://www.uni-kassel.de/fb12/fachgebiete/cad/cax/lars/machining.htm>. Acesso em: maio 2004.

__________________________________________

Como citar este artigo:

MASSARA, Bruno. A descontinuidade espaço-temporal redefinindo o conceito de lugar. (in) MASSARA, Bruno. Interfaces Gráficas e Cidades: Tecnologia Digital na Visualizaçào de Dinâmicas Espaciais en Grande Escala. Dissertação de Mestrado. NPGAU/EAU/UFMG, NOV. 2005, p. 36-47. Disponível em <http://www.territorios.org/teoria/H_C_descontinuidade.html> Acessado em: