"Não
há uma obra situacionista, mas um uso situacionista da obra" Guy Debord
1 - Formação:
Em 1960 é lançado o Manifesto
da Internacional SItuacionista, organizado por um grupo de jovens franceses dotados de uma autodenominada "ideologia marginal". De fato, buscavam uma alternativa para teorizar as "práticas espontâneas" desenvolvidas no seio
da subcultura boêmia da Rive Gauche parisiense.
Guy Debord foi o seu fundador principal, mas no seu círculo de amigos incluíam-se pessoas de diferentes formações: aventureiros, poetas, escritores, arquitetos, e artisyas "marginalizados"
de vários âmbitos, incluindo ainda membros do grupo Letrista. A Internacional Situacionista surgiu a partir de uma fusão de grupos, entre eles o COBRA, os Psicogeográficos, e o MIBI
(ou Movimento Internacional para uma Bauhaus Imaginista), este último encabeçado por Asger Jorn, além de artistas como
Pinot Gallizio (químico convertido em industrial e pintor que realizou
desenhos a partir das "máquinas de pintar", rolos de tela pintados
com pistolas e resina, feitas com o intuito de cobrir grandes extensões da cidade). No geral, dentre as atividades da Internacional Situacionista reuniam-se obras das mais distintas mídias e formatos, fruto do trabalho de: artistas, urbanistas, escritores, cineastas e poetas.
Guy Debord, líder ideológico do movimento, assumia nitidamente uma postura
"contra-cultural" numa época por ele denominada de
"sociedade do espetáculo". Recusava-se a entrar
no enquadramento rígido e homogeneizante sugerido pelos conceitos de "usuários-tipo", definição esta
surgida no Estilo Internacional e difundida principalmente dentre os arquitetos do Movimento Moderno. Quanto à situação social vigente, dirigiam incisivas críticas para o "efeito
retardante de uma estrutura econômica opressora que exclui os
usos de efeitos afetivos". Questionavam o papel da produção cultural na
cultura consumista do pós-guerra, posicionando-se assim como um grupo de dupla identidade
estética e política. Destinavam fortes críticas para a "pasteurização da vida cotidiana", em meio a qual os usuários encontravam-se "embutidos nas fórmulas de uso".
"Aqueles de nossos colegas que se mostram partidários
de uma arquitetura nova, uma arquitetura livre, devem entender que a
arquitetura deve abrir caminho tomando como objetivo situações
emotivas, mais do que formas emotivas"
"O urbanismo não existe, não é mais do que
uma ideologia. A arquitetura sim existe, igual à Coca-Cola. Um
produto revestido de ideologia, mas real, que satisfaz de uma maneira
falsa uma necessidade falsa."
Uma das críticas mais contundentes direcionava-se à
pobreza teórica do funcionalismo dominante da arquitetura.
O Movimento Internacional Situacionista merece destaque sobre outros movimentos culturais devido à sua intensa postura crítica, política e artística, com desdobramentos nas questões tecnológicas. Na verdade, eram aversos à tecnologia enquanto finalidade, mas não como meio crítico. Exemplo disso é o fato de que alguns membros, notadamente o arquiteto Constant, buscaram caminhos para explorar a tecnologia a partir de um sentido crítico e propositivo. Sua relação com os outros membros do grupo era controversa, o que acabou por levar à sua desconexão do grupo tempos depois. Suas maquetes conceituais para um "urbanismo tridimensional e dinâmico" são citados aquiadiante.
2 - Principais Ambições:
Acreditavam
na descentralização da arte, objetivo que poderia ser supostamente
alcançado com a "inflação" da produção
de arte a partir custos muito baixos e em grande quantidade. Tinham uma atuação mediada pelo melodrama, pelo humor sarcástico e uma ira inflexível
contra a ordem sociocultural pré-estabelecida". Faziam uso humorístico de imagens
publicitárias dentre outros formatos de poesia urbana que utilizam
como meio e suporte formas de expressão popular. A produção artística era movida pela exploração
de novas formas de subjetividade revolucionária. De acordo com Manifesto Situacionista, algumas questões deveriam estar incondicionalmente associadas: tempo vivido x espaço; ação x representação;
vida x arte.
Incluída permanentemente em suas linhas de ação, a realidade sociocultural era definida para os Situacionistas como
um complexo formado: pela estética, pelos sentimentos e pelos costumes. Reagiam bravamente contra a "cultura do espetáculo", enfatizando o valor dos pormenores subjetivos implicados na experiência da vida cotidiana. Para eles, uma mudança definitiva nestes valores pressupunha uma revolução,
uma transformação radical da estrutura
e do caráter social a partir da adoção de valores pessoais e subjetivos, tomando como refrência o desejo individual. Buscavam uma redefinição
do que seriam "desejos individuais" frente às novas possibilidades
do mundo atual: "temos que construir ambientes novos que sejam,
simultaneamente, produto e instrumento de novas modalidades de comportamento".
Para tal, eram necessárias relações próximas entre espaço e desejo. E, como um campo de testes, a paisagem era o seu laboratório de busca. Os desejos revolucionários situacionistas denunciavam a necessidade da renovação artística e cultural, a busca pelo desconhecido, pela surpresa, pela espontaneidade, a não preocupação
com objetivos finais, mas com ato criador, o processo criativo, a generalização
criativa.
O problemas da disposição impessoal dos espaços nos grandes projetos urbanos era uma das grandes inquietudes
do grupo. Propunham uma reconceitualização
criativa da cidade, através da qual seria possível a construção de situações
sobre as condições de organização e ação cotidianas. "Não tratar a cidade tratando dos iguais, lidar com a sua multiplicidade, como um novo teatro de operações
culturais". A Metrópole não era apenas um "momento do habitar",
mas a sua condição e possibilidade. Assim, urbanismo não
era encarado como planejamento urbano, mas valorizado pela sua condição de ser, suas possibiidades.
Colocam em xeque o ato de experimentar dos edifícios e
lugares urbanos de forma automatizada. Segundo o pensamento situacionista, a revolução do cotidiano da cidade só
seria possível através da consideração
do lugar urbano para além de sua configuração formal, mas
nas situações de uso que comporta.
O papel da obra de arte deveria ser de revolucionar o cotidiano, se misturar
ao cotidiano, rompendo com o circuito da elite para a arte, ou dépassement
de l´art. Como estratégia incentivavam a sabotagem das divisões sociais e institucionais
que separavam a arte do cotidiano. Diante de um "funcionalismo míope",
a Internacional Situacionista admitia a necessidade de um "entorno funcional fascinante", alcançado
através de situações não-planejadas, novos tipos de construções
destinadas a promover novos modos de habitar: "uma construção
concreta de ambientes momentaneamente vividos e sua transformação
em uma qualidade superior de percepções".
Viam na ampliação do campo de atividade artística, uma busca constante pela
invenção.
Dentro do ideal de um "urbanismo unitário" , a arte deveria estar amalgamada à cidade, constituindo uma atividade sempre variável, sempre viva, atual, criativa.
O espaço se definiria conforme os "trajetos psicogeográficos",
sensíveis aos sucessivos efeitos do meio sobre a
afetividade e o comportamento. Deveriam ser superados: a dicotomia entre momentos artísticos
e momentos banais; e o rompimento desta zona de fronteira entre arte e vida cotidiana. Diziam eles:
"construa você mesmo uma situaçãozinha sem futuro", convidando para uma transformação do mundo cotidiano através de uma
fusão de vida ordinária e arte".
Através da performance "Psicogeográfica", seriam realizados
estudo a respeito das leis precisas e dos efeitos exatos do meio geográfico,
construído ou não construído, e sua influência direta sobre o comportamento afetivo dos indivíduos. Para isso seriam necessárias "novas
cartografias", novos artefatos gráficos e textuais que reutilizariam
mapas existentes, imagens topográficas, fotografia aéreas
e gráficos sociológicos como recurso para se traçar
vetores com relação ao espaço construído; uma chamada "geografia social". A concepção
situacionista de cidade era baseada num lugar de movimento nômade, lugar de desorientação. O
espaço metropolitano poderiam ser encarado e mapeado como um sistema de zonas unidas por "setas
e vetores de desejo". O detournement, ou desvio, era necessáio, e consistia na apropriação e reorganização
criativa de elementos preexistentes, muito utiizado nestas novas cartografias, um processo de descontextualização
e recontextualização das referências.
3 - O conceito de Labirinto e a Teoria da Deriva
O Labirinto era utiizado como referência idológica para uma
concepção dinâmica do espaço situacionista, oposto à
perspectiva estática das linhas ortogonais modernistas. Ele era também associado a uma estrutura de organização
mental e um possível método de criação aberto baseado no "vagar, vagabundear,
nos trajetos e caminhos com saídas luminosas e reclusões
trágicas, um tipo de mobilidade generalizada".
A Internacional Situacionista propõe
o abandono do modelos euclidiano de figuração do espaço, rejeitando pontos fixos de orientação visual que segundo eles reduzia a distância psíquica entre o objeto e
o sujeito. Não admitiam mais o "fazer soberano".
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Devemos explorar
o espaço urbano e percebê-lo como ele é: uma aglomeração
caótica, um labirinto de ambientes, interrogá-lo sobre suas distâncias,
seus pólos de atração". A prática da deriva (1958) propunha uma experiência artística-sensorial
com bases conceituais muito particulares, com caráter lúdico e experimental. Segundo eles, "ela leva a estabelecer o levantamento
das articulações psicogeográficas de uma cidade
moderna, suas diferentes unidades de ambiente e habitação".
A deriva urbana é um comportamento situacionista tipicamente labirintiano,
e segundo Debord, uma experiência de abandono
da atividade produtiva-consumista, que deixa-se deixar levar pela desorientação
da cidade, pela fruição: "um trajeto dirigido pela indeterminação
e pelo azar, um jogo de itinerários dispares". Num movimento contrário aos preceitos urbanísticos modernos, documentados pelas publicações da época, notadamente os livros de urbanismo de Le Corbusier, os situacionistas consideravam que o desenho da cidade
deveria surgir a partir do seu conhecimento experimental, ou melhor, experiencial. Suas bases teóricas demandavam novos olhares definidos a partir da
apropriação direta do espaço, e em referências diretamente construídas e percebidas
que permitem despertar a atenção individual: "se deixar despertar pela cidade,
vagar por ela, perdendo-se tempo deliberadamente durante dias inteiros".
Uma experiência
real da prática situacionista da deriva e da experiência do labirinto foi realizada durante 3 dias no coração da cidade de Amsterdã. Conduzida como uma "deriva sistemática", era liderada por
3 times situacionistas, e consistia em percorrer um caminho
que poderia ser definido a partir de qualquer lugar entre 200m e 3km. A realização deste percurso não deveria enfatizar referências da arquitetura da cidade, pontos facilmente reconhecíveis, de forma a não se desdobrar num caminho que reproduzisse
redutivamente a ambientação urbana. Ao invés disso
deveria tender à constituição de uma atmosfera nova e híbrida, combinando
elementos interiores e exteriores díspares, passagens através de áreas
de diferentes luminosidades, efeitos sonoros incomuns entre outros tipos de estímulos
sensoriais, favorecendo e promovendo possibilidades de se ficar perdido.
"O lugar labiríntico reside em ser desenhado, só existe
enquanto trajeto, travessia. Não se consegue saber se estamos
entrando ou saindo, nem reconhecer seus limites e suas fronteiras".
Em exibição montada no Stedelijk Museum em Amsterdã, galerias foram convertidas em um enorme labirinto sensorial, no qual o passante se sujeitava a diferentes estímulos perceptivos vindos de representações artificiais de chuva, ventos, névoas, um conjunto de ambientes
acústicos previamente regravados e um túnel criado pela
pintura industrial de Pinot Gallizio. Esta exibição é considerada um marco da micro-deriva.
Os situacionistas valorizavam a celebração de uma condição humana na qual
os espaços públicos deixam de ser cenários privilegiados
do poder para se converter em uma flutuação aleatória
de itinerários múltiplos e difusos, determinados pela
lógica da mobilidade, fundamentados pela experimentação
radical dos lugares da cidade ou mesmo no desenho de uma arquitetura
nova.
4 - Projeto da Nova Babilônia - Constant
O Projeto "Nova Babilônia" era composto por um conjunto de intervenções urbanas experimentais constituídas por megaestruturas
desenvolvidas Constant. Estas "urbanidades experimentais" utilizavam gigantescas estruturas espaciais cujos
elementos diagonais e tensionáveis foram inspiradas pelas inovações estruturais surgidas ao longo da Revolução Industrial, como as apresentadas no Pavilhão Francês na Exposição
de Bruxelas em 1958, pelo engenheiro francês René Sarger.
Nova Babilônia foi concebida como uma construção contínua sobre pilares,
dotada de um extenso sistema multifuncional de espaços
para: se dormir, divertir, realizar múltiplas atividades em áreas suspensas; enquanto ao nível térreo poderiam multiplicar-se os espaços livres para o tráfego
e para outras atividades públicas.
Constant afirmava que para sua execução deveriam ser utilizados materiais ultra leves e
facilmente montáveis, tendo o objetivo de produzir uma arquitetura suave
e espaçada. A cidade teria, segundo seus cálculos "100% de espaço construído, mas 200%
de espaço livre, ao contrário dos 80% de espaço construído e 20% de espaço livre das cidades
em geral". Seria dotada de grandes terraços ao ar livre, acessados por elevadores
e escadas, e cobririam toda a cidade. Nestes terraços-plataforma se localizariam os espaços esportivos, os
aeroportos, heliportos, jardins-suspensos, etc. A articulação da cidade em níveis
diferenciados, espaços contíguos e intercomunicáveis,
possibilitaria para os moradores uma variação de ambientes e espacialidades muito rico, e fomentaria assim
a deriva.
"Embora o projeto que acabamos de esboçar corre perigo
de ser rechaçado considerado um sonho fantasiado, insistimos
em que é realizável tecnicamente e desejável do
ponto de vista humano, e indispensável do ponto de vista social.
A insatisfação cada vez maior que domina a humanidade
chegará a um extremo em que todos nós veremos necessidade
de executar esses tipos de projetos, para os quais já dispomos
de meios de construção".
Nova
Babilônia seria caracterizada por espaços em constante transformação, um
produto variável de uma atividade lúdica generalizada,
um "estado de espontaneidade". As megaestruturas desta cidade-conceito seriam
conectadas bem acima do solo, possibilitando que fossem também instaladas em cidades existentes de modo que pudessem "entrar e sair da cidade antiga a qualquer
momento". Constant considerava que esse tipo de megaestrutura poderia ser pensada para qualquer cidade, utilizando o potencial de seus espaços vazios aéreos.
Influenciado pela psicogeografia, imaginava uma ambiência que pudesse ser constantemente remodelada pelo andar de seus habitantes, pelas suas descobertas psicogeográficas.
O estranhamento, conceito fundamental da arte, seria inevitáel: "deixar o espaço lhe impressionar, exercitar
a obra, tomar posse do lugar". Propunha "soltar a arquitetura
nas mãos de quem a usa", deixando frestas e permitindo sua identificação pessoal,
num "cotidiano que não se pode jamais domesticar". Nova Babilônia oferecia uma imagem benevolente
de um futuro em que a tecnologia e o processo urbanizador constituiriam
uma fonte de prosperidade e liberdade. Uma cidade nômade,
feita de habitações temporárias, permanentemente
remodelada pelo andar de seus habitantes, estruturada em grandes redes
que se sobrepõem de maneira ilimitada sobre as cidades existentes. Esses eram alguns dos delírio de Constant.
A fundação teórica destas iniciatívas poético-construcionistas tinha um nome: " urbanismo
unitário". Para sua concretização deveria haver uma utilização sistemática de todo o conjunto das artes
e tecnologias disponíveis e demais recursos que contribuíssem para produzir uma composição
holística do meio ambiente. "Qualquer construção
futura deverá ser precedida de uma profunda investigação
das relações entre espaço e sentimento, como forma
e estado de ânimo". Constant idealizava uma arquitetura que fosse capaz de transformar
as concepções dominantes de tempo e espaço, e que
fosse ao mesmo tempo um instrumento de conhecimento, um meio de ação,
uma "arquitetura modificável, maleável e
carregada com os desejos de seus habitantes". A principal atividade dos habitantes desse
território sensório-democrático seria a contínua deriva, um contínuo
deambular que provocaria "um estranhamento meio-ambiental implacável,
profundo e delirante".
Para Constant, uma ambiguidade fundamental deveria ser esclarecida, determinar com clareza a diferença entre um "espaço estático" e um espaço "dinâmico".
O espaço estático, segundo suas palavras, era: "o espaço óbvio para
a sociedade utilitarista, um espaço
baseado diretamente no princípio de orientação funcional". A imperatividade do trabalho na sociedade moderna era vista para Constant como diretriz fundamental para a organização dos espaços urbanos; idéias como a maximização dos deslocamentos entre local de moradia e o local de trabalho, etc. De certa forma, levando em conta o discurso moderno, muitas proposições urbanas obedeciam naturalmente este modelo de ordem e projeto. Inúmeras concepções urbanísticas modernistas partem desse princípio
de orientação.
Já o espaço dinâmico advém de um pensamento associado aos preceitos situacionistas de uma sociedade lúdica. Para o ideal urbano-experimental de Constant, uma construção estática
do espaço é incompatível com os as contínuas
mudanças de comportamento de uma sociedade. As atividades lúdicas
conduzem, consequentemente, a uma inevitavelmente uma dinamização do espaço.
O principal habitante do espaço dinâmico seria o homo ludens, definição situacionista para o homem que "atua sobre o seu entorno, interrompe,
muda, intensifica seu micro conxtexto imediato". Mais do que um espaço de trabalho, o espaço dinâmico
era considerado objeto de jogo, e isso impulsionava a demanda pela mobilidade e variabilidade de suas ambiências e estruturas. Contrários ao rápidos deslocamentos, tornava-se imperativo intensificar o
uso do espaço, potencializando o jogo, a aventura e a exploração.
No entanto, ela deveria ir além do labirinto, pois nele a escolha de apenas um caminho correto único torna o horizonte prático de sua experiência limitado. O labirinto deveria ser continuamente modificável, dotado de um
número infinito de saídas em movimento: um labirinto dinâmico.
Referências Bibliográficas:
. WUILLAUME, Francis (trad.) VINICIUS, Leo (trad.) Internacional Situacionista. Situacionista: teoria e prática da revolução. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2002.
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